Uma fábula da política real

A base da história conta-se em três frases: na Junta de Freguesia de Carnide esperavam-se uns dinheiros devidos pela Câmara de Lisboa há algum tempo, por alma de uma figura moderadamente demagógica chamada “orçamento participativo” (inventada para fingir que os cidadãos mandam nos dinheiros deles, pomposamente designados pelos governantes sob o eufemismo de “dinheiros públicos”). A transição daquela soma para os bolsos da Junta foi aprovada há cerca de uma semana na Assembleia Municipal. Todos os presidentes de junta lamentaram o atraso, atribuíram o atraso às tramitações burocráticas – “porque às vezes, como todos sabemos, é preciso agilizar, não se pode esperar o tempo todo que um processo demora a percorrer os serviços” -, e suplicaram que a burocracia não se repetisse agora, depois da proposta de transferência ter sido aprovada na Assembleia.
Um rebuçado. Ver os senhores governantes vítimas de si mesmos, vulneráveis perante a absurda máquina burocrática que eles próprios inventaram e nutriram, não tem preço.
Começo por felicitar a freguesia de Carnide por ter conseguido o inestimável melhoramento pelo qual esperou. De seguida, aproveito a historieta, já que dificilmente se encontra um exemplo perfeito para compreender a natureza e os efeitos da burocracia. É que a burocracia cresce sozinha, não precisa de ajuda, transforma-se no “monstro” que Cavaco Silva descreveu num célebre artigo em Fevereiro de 2000, no saudoso Diário de Notícias, e a partir de um certo tamanho começa a operar contra os cidadãos e contra a sociedade.
A burocracia cresce sempre que se pede mais regras, mais regulamentos, mais obrigações e mais proibições; e alimenta-se quando se pede mais funcionários, porque visivelmente “faltam meios humanos”; e depois é fundamental encontrar mais regras, obrigações e proibições, para ocupar aquele exército de funcionários e justificar o salário deles; e desta maneira zelosa a burocracia acaba por operar contra os cidadãos, já que se toma a si própria como a única defesa do Estado perante as inumeráveis velhacarias que os cidadãos constantemente querem perpetrar.
Essas operações que a burocracia zelosa topa como mal disfarçadas velhacarias são, no fundo, todas as mudanças. A partir de certo ponto, nenhum cidadão é senhor de operar uma mudança na sua vida sem recorrer à burocracia. A partir desse mesmo ponto, o único motivo que leva um cidadão a sujeitar-se à burocracia é a vontade de mudar seja o que for na vida dele. Ou na casa dele. Ou da família dele. Ou da empresa dele. Quando o impedimento dos cidadãos mudarem a pequena parte que lhes diz respeito, sem que essa mudança seja previamente apreciada e aprovada pelo Estado, se torna a vida habitual de uma sociedade, essa sociedade está doente. A burocracia virou-se contra a sociedade.
O círculo vicioso é sinistro. De cada vez que se pede mais regulação, mais regras, obrigações e proibições, ouvem-se violinos nos corredores da burocracia. Estes pedidos de mais e mais regras são produto típico da esquerda, e ainda mais típico da extrema-esquerda, que vive para mandar, mas são também típicos da maior fatia da direita política portuguesa, cujos governantes perfilham acriticamente tudo o que a esquerda decide. Os governantes da nossa querida direita inspiram-se na esquerda em tudo, desde a moralidade às técnicas mais manhosas de criar e manter o poder. Além disso, quanto menos um partido ou governante sabe de um determinado assunto, mais instintivamente ele se inclina para obrigar ou proibir coisas, convencido que a política é uma colecção de obrigações e proibições impostas, desde que saibamos descobrir as obrigações e proibições “certas” e, de preferência, “disruptivas”.
Pelos labirintos da burocracia passa toda a corrupção. Passa a grande corrupção (através da evidente necessidade de “agilizar”), passa a média corrupção e passa também a pequena. Esta é talvez a principal verdade a que os partidos precisam de chegar se quiserem combater a corrupção: combata-se a burocracia. Onde há burocracia, há corrupção. Onde houver menos burocracia, haverá menos corrupção.
Tudo examinado, e voltando ao princípio, é doce contemplar um caso como o da freguesia de Carnide, e do coro afinadíssimo dos outros presidentes de junta perante a Câmara de Lisboa. Alimentaram a burocracia, sempre pensando que ela se aplicaria aos outros. Nunca imaginaram que a criatura se virasse contra eles. Quem a criou queixa-se agora dos efeitos dela. Suplicam que os dinheiros esperados não andem perdidos pelos labirintos a receber carimbos e verificações, do serviço A para o serviço B, C, e D, até que a freguesia de Carnide receba a sua parte. Uma espécie de fábula da política real.
observador