Nem santos, nem invasores. Os imigrantes são pessoas

Esta semana o Patriarca de Lisboa, D. Rui Valério, publicou, no Observador, uma crónica onde refletia sobre a temática da imigração. Não sou ninguém para avaliar textos oriundos do episcopado, mas pareceu-me um texto equilibrado e sensato. Ao mesmo tempo que afirmou que é preciso “olhar os migrantes com compaixão e responsabilidade”, D. Rui Valério referiu que “o acolhimento não pode ser ingénuo nem desordenado”. A par da necessidade de “políticas que respeitem a sua dignidade e os ajudem a reconstruir a vida”, alertou para o dever de “regular os fluxos migratórios em função do bem comum”, esclarecendo que qualquer integração exige um “pacto cultural”.
Mas, ao que parece, não foi suficiente. E as reações podem ser catalogadas em quatro categorias. Elegante: “Valério, vá tratar do vitiligo”. Intelectualmente lúcida: “Cantam bem mas não me alegram”. Clássico: “Quantos destes imigrantes é que o Vaticano acolheu no ano passado e neste ano?”. Subtil: “Vá destruir outro país. Hipócritas! Vão de retro”.
Pois bem, dá a sensação que os radicais descobriram algo que a eletrotécnica, só por pura teimosia, insiste em negar. Segundo a ciência, os circuitos elétricos dependem de dois polos, o positivo e o negativo. Segundo os radicais, a vida só funciona com um. Desculpem, mas não é assim. É possível dizer-se que o aumento de 4% para 15% de população imigrante, em Portugal, de 2017 a 2025, é um boom com consequências claramente questionáveis, nomeadamente na pressão dos serviços públicos, mas sem que isso nos leve concluir que enfrentamos “uma guerra de invasão não declarada”. Do mesmo modo que não basta falar da necessidade da imigração para a vitalidade de alguns setores da economia, ou do contributo de positivo de 1.604 milhões de euros para a segurança social que deriva desta comunidade, para santificar e passar o beneplácito régio a tudo e todos.
Pelos vistos temos que optar por um lado. Não dá para acreditar, simultaneamente, que Portugal é o sétimo país mais seguro do mundo, e que perceção de segurança também importa. Já se sabe: quando se opta por um lado, o outro fica indisponível. E quem opta é um herói-mártir para os fãs e um traidor-mentecapto para os demais.
Os radicais florescem ao som de boas intenções e fantasias falsas e libertinas. Uma delas é aquele sonho molhado da extrema-direita onde só surgem “magrebinos” e o “indostão”. Na realidade, os cinco países com maior presença de imigrantes em Portugal são, por ordem: Brasil (35,3%), Angola (5,3%), Cabo Verde (4,7%), Reino Unido (4,5%) e Índia (4,2%). O Nepal é o 8.º, com menos imigrantes que a Itália. O Paquistão o 12.º, com menos imigrantes que França, China ou São Tomé.
Mas, também, existem sonhos molhados na extrema-esquerda. Frases como “a imigração revolve o problema do envelhecimento populacional” ou “a imigração traz diversidade e riqueza cultural”, não são cientificamente rigorosas, nem, tão pouco, completas. Aliás, parecem saídas de uma composição de um aluno médio do secundário. Com o devido respeito para com eles, atenção, que mereciam melhor.
Mas, a falta de rigor também chega a frases como a que Joana Amaral Dias publicou, esta semana, num artigo de opinião. Segundo dizia: “Na Suécia, por exemplo, Malmö já é classificada como tão perigosa quanto Bagdade”. Ora, é verdade que a plataforma Numbeo apresenta a taxa de criminalidade de Bagdade em 55.6 e a de Malmö nos 55.5. Mas o que é o Numbeo? Uma plataforma de autorrelatos subjetivos, que mede perceções de segurança, e não quantas pessoas morrem ou sofrem violência. Aliás, em Malmö, em 2023, só houve 1 homicídio por tiroteio, em Bagdade não é sequer possível aceder a uma qualquer estatística.
Ainda assim, folgo em saber que Joana Amaral Dias (JAD) mudou de opinião. No artigo que assina diz que “os neomisantropos querem destruir a identidade nacional”, e questiona: “Acham que os ibéricos podem ter o coração aberto para acolher estrangeiros quando foram obrigados a conviver, subitamente, com hordas de gente com hábitos quotidianos, religião, princípios, totalmente diferentes?”. Ora, não é que eu tenha boa memória, mas quando era um jovem estudante do 12.º ano, assisti a um debate promovido pela FFMS subordinado à pergunta, “A Europa Precisa de Deus?”. Na altura, JAD, participante do painel, afirmou categoricamente que a Europa cristã “é um mito”, e que o é porque, durante séculos, foi sucessivamente “expulsando, dizimando e exterminando outros cidadãos, praticantes de outras religiões, em nome desse ideal – que eu acho que é mais um pesadelo – de ter uma Europa branca e cristã”. O que o tempo não faz.
Mas, voltando ao tema, não tenho, como ninguém tem, uma solução responsável e ponderada para a imigração, debaixo da língua. Suspeito que este é um tema que veio para ficar, que a imigração reacendeu um ressentimento social que era residual em Portugal, e que é possível que tenhamos de ir dando uma no cravo e outra na ferradura para equilibrar o barco. Porém, tenho duas certezas. Em primeiro lugar, que sem as estruturas socio-caritativas das religiões presentes em Portugal, sem as paróquias, as IPSS´s, a Cáritas, as conferências vicentinas, a comunidade de Sant’Egídio, a comunidade Vida e Paz, os diversos secretariados e serviços para os refugiados e migrantes, a resposta nacional a este tema seria ainda mais deficiente, senão tecnicamente inexistente. Em segundo lugar, acredito em algo que, bem sei, pode, hoje, passar por excentricidade: os imigrantes nem são santos, nem invasores, são pessoas.
observador