Quando o SNS se fecha às mulheres em situação de fragilidade

O cuidar exige presença. Escuta. Acolhimento. Mas muitas grávidas enfrentam um sistema que não as vê, não as entende e, pior, não as acompanha.
No início de julho, uma grávida de 31 semanas, residente no Barreiro, ligou ao SNS24 por fortes contrações e menor atividade fetal. Foi encaminhada para o Hospital de Santa Maria, em Lisboa — a cerca de 60 quilómetros — sem que alguém confirmasse se tinha transporte, apoio ou sequer meios para lá chegar. Mesmo após mencionar não ter capacidade económica, a resposta foi desligar. Sem alternativa, recorreu ao 112. Horas depois, chegou ao Hospital de Cascais. Com o diagnóstico de descolamento de placenta, foi tarde demais. O bebé já não tinha sinais de vida.
E não é um caso isolado. Enquanto enfermeira de saúde materna, acompanho com frequência grávidas em situações semelhantes: sozinhas, sem transporte, sem literacia em saúde, sem domínio da língua e confrontadas com um sistema que presume autonomia onde só existe vulnerabilidade — linguística, social e económica.
O caso do Barreiro, por mais trágico que seja, é apenas a face visível de um problema mais profundo: a vigilância pré-natal deficitária nos cuidados de saúde primários. É aí que tudo começa — ou deveria começar. Quando a gravidez não é acompanhada com qualidade e proximidade, os riscos acumulam-se silenciosamente até emergirem de forma aguda nas urgências hospitalares. Não se trata de falhas isoladas, mas de um sistema que deixa estas mulheres para trás desde o início.
Na Margem Sul, muitas mulheres enfrentam múltiplas barreiras: fragilidade social, vigilância médica insuficiente, barreiras linguísticas e incerteza sobre onde poderão parir. Uma parte significativa é oriunda de países como Angola, Guiné, Nepal ou Bangladesh, chegando grávidas a Portugal, sem vacinas, sem consultas pré-natais e com patologias por diagnosticar. Para muitas, a gravidez é o primeiro contacto com o SNS.
E esse primeiro contacto, na maioria dos casos, dá-se numa Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados (UCSP). Muitas destas unidades funcionam sem médicos de família e com equipas de enfermagem reduzidas, onde poucos são especialistas em saúde materna e obstetrícia. Ainda assim, esses profissionais têm competência legal para acompanhar gravidezes de baixo risco — uma prática já consolidada em vários países europeus. Em Portugal, essa competência está prevista no Regulamento n.º 391/2019, publicado em Diário da República. Contudo, a sua aplicação prática continua a ser limitada pela tutela que conhece esta limitação. Mesmo acompanhada por outros sectores estratégicos, mantendo o bloqueio organizacional e orçamental. O resultado? Gravidezes deficientemente vigiadas que elevam o risco clínico no momento do parto — tanto para a mãe como para o bebé.
O caso do Barreiro expõe uma fragilidade estrutural: a dependência de algoritmos que não contemplam realidades fora da norma. O SNS24 seguiu o protocolo — mas ignorou o essencial. Não perguntou se havia transporte, apoio, meios. E, quando a solução automática não serviu, o sistema não soube o que fazer. Desligou. A resposta integrada falhou. A tecnologia, que deveria apoiar, tornou-se barreira.
Este falhanço é ampliado por uma realidade demográfica crescente. Os concelhos de Almada, Seixal, Barreiro, Moita, Montijo, Alcochete e Setúbal — abrangidos pelas Unidades Locais de Saúde (ULS) Almada-Seixal, Arco Ribeirinho e Arrábida — registam um aumento expressivo da população estrangeira. Em 2023, a Península de Setúbal atingiu 11,9% de residentes estrangeiros, uma das taxas mais elevadas do país. No Montijo, mais de 1 em cada 9 habitantes é imigrante. Em Almada, lidera-se em atribuição de RSI. Populações sem rede, sem médico, sem transporte — mas sujeitas a protocolos que presumem o contrário.
As três ULS da Margem Sul — Almada‑Seixal, Arco Ribeirinho e Arrábida — cobrem, juntas, mais de 1.160 quilómetros quadrados e cerca de 775 mil pessoas. Este território vasto e densamente habitado, com grande presença de comunidades imigrantes, exige resposta territorial organizada — não adaptações pontuais ou centralizadas.
Na UCSP onde exerço funções, a ULS Arco Ribeirinho, no Barreiro, com mais de 23 mil utentes — muitos deles estrangeiros, com baixos recursos económicos e sem apoio familiar — a escassez é visível. Temos apenas nove enfermeiros, dos quais quase metade está ausente por motivos prolongados. Segundo o Despacho n.º 9490/2019, seriam necessários pelo menos quinze para garantir cuidados mínimos seguros. Estamos longe desse número.
No mesmo território, convivem USF e UCSP sob a mesma tutela e financiamento, mas com lógicas e incentivos diferentes. As USF acolhem utentes estáveis, com morada fixa e maior previsibilidade. Trabalham indicadores que se transformam em prémios de desempenho. As UCSP, pelo contrário, recebem os “nómadas” do sistema — imigrantes, famílias em rotatividade, pessoas sem historial clínico conhecido — sem reforço proporcional de recursos. A desigualdade, aqui, é institucional.
E essa desigualdade atinge também os profissionais. Quem está na linha da frente — com mais sobrecarga, mais complexidade, menos condições — não recebe qualquer reconhecimento adicional. Apenas o salário base, indiferente ao esforço, ao risco, à responsabilidade. A consequência? Rutura. Desgaste. Burnout. E, acima de tudo, a quebra do vínculo com quem mais precisa de ser acompanhado.
É urgente repensar esta lógica. Na tentativa de dar resposta ao problema que causa maior impacto — a escassez de profissionais que leva aos constantes constrangimentos nas urgências obstétricas —, o Governo do Partido Socialista, sob liderança do então Primeiro-Ministro António Costa, nomeou uma comissão liderada pelo Dr. Diogo Ayres de Campos. O relatório resultante, intitulado Rede de Referenciação Hospitalar em Obstetrícia, Ginecologia e Neonatologia, foi publicado pelo SNS em fevereiro de 2023 e propõe duas abordagens principais: (1) melhorar as condições de trabalho e a remuneração dos profissionais de saúde, nomeadamente médicos obstetras, com vista à sua retenção no SNS; ou (2) concentrar os recursos humanos numa única unidade hospitalar por região, como já acontece com outras valências em Lisboa ou no Porto. Importa referir que este estudo, embora elaborado sob orientação do governo anterior, continua a integrar o pensamento estratégico e os planos do atual Governo, mantendo-se presente nas orientações em curso do Ministério da Saúde.
No entanto, esta segunda solução ignora as realidades territoriais. Na Margem Sul, as distâncias entre hospitais são significativas, os acessos estão frequentemente congestionados, e os custos de deslocação recaem sobre os profissionais — sem qualquer compensação. Acresce que muitos destes profissionais têm contratos individuais de trabalho e não estão abrangidos pela lei da mobilidade, o que significa que não podem ser legalmente obrigados a deslocações entre instituições. Forçar essa mobilidade pode gerar descontentamento, instabilidade e acelerar o abandono do setor público em direção ao privado ou à emigração.
O que é urgente mudar?
- Reestruturar carreiras, com incentivos justos para quem trabalha em zonas carenciadas ou com horários rotativos. A conciliação entre a vida profissional e pessoal tem de fazer parte da equação. O conceito dos hospitais “Magnet” — que valorizam o bem-estar e o desenvolvimento dos seus profissionais — é um exemplo inspirador que deve ser considerado
- Reestruturar a linha SNS24 para grávidas, com intérpretes, triagem culturalmente sensível e capacidade real de resposta para quem não domina o idioma ou não tem autonomia.
- Criar mecanismos de apoio à mobilidade em saúde, com transporte garantido e gratuito para grávidas referenciadas para fora da área de residência.
- Garantir o funcionamento contínuo das urgências obstétricas na Margem Sul, evitando transferências inseguras e desnecessárias.
- Investir em programas de literacia em saúde materna, construídos em parceria com associações, autarquias e comunidades locais.
- Eliminar as desigualdades entre USF, UCSP e UCC dentro da mesma ULS, criando um modelo de financiamento e incentivos equitativo, que reconheça a complexidade dos contextos de maior vulnerabilidade.
- Reforçar equipas das UCSP da Margem Sul, cumprindo o Despacho n.º 9490/2019 sobre dotações seguras. É a única forma de garantir cuidados seguros e éticos.
- Criar um Centro de Responsabilidade Integrado (CRI) específico para grávidas em situação de vulnerabilidade, com equipas multidisciplinares, financiamento próprio e articulação entre UCSP, urgências hospitalares e rede social, assegurando vigilância precoce, continuidade de cuidados e resposta célere em situações críticas.
- Adaptar as políticas de saúde às realidades territoriais, abandonando a lógica centralista e assumindo que uma resposta eficaz tem de ser moldada ao território.
Não fui formada para dizer “não há nada a fazer”. Fui formada para cuidar. E cuidar, neste contexto, é resistir.
É resistir à burocracia que não escuta. É resistir à inércia que abandona.
É resistir à indiferença que mata.
Mas já não chega resistir. É preciso exigir.
Este artigo não é um desabafo. É um compromisso: exigir acompanhamento estruturado, competente e humano, independentemente da origem, da língua ou da condição social.
Como sociedade, é nosso dever agir — antes que uma próxima tragédia se repita.
observador