De fora da lei a ícone: Bambi fala sobre sobrevivência trans, fama, J.K. Rowling e a luta que não acabou

PARIS — Décadas antes de transgênero se tornar um termo conhecido e “RuPaul's Drag Race” se tornar um sucesso mundial — antes que a visibilidade trouxesse direitos e reconhecimento — havia Bambi, o ícone parisiense que dançava para Hollywood.
O momento que mudou a história queer ocorreu em um dia escaldante de verão no início da década de 1950 na Argélia. Um adolescente efeminado chamado Jean-Pierre Pruvot ficou hipnotizado enquanto o trânsito parava e a multidão se aglomerava em torno de um espetáculo escandaloso que se desenrolava nas conservadoras ruas de Argel.
Todos pararam para olhar para Coccinelle, a extravagante estrela "travesti" do lendário cabaré parisiense, o Carrousel de Paris, que desfilava desafiadoramente pela avenida, impecavelmente vestida de mulher, provocando admiração e indignação e literalmente parando o trânsito.
O que Pruvot — que se tornaria famosa sob o nome artístico feminino "Bambi" e melhor amiga de Coccinelle — testemunhou foi mais do que uma mera performance. Foi um ato de resistência que surgiu das cinzas da perseguição nazista à comunidade LGBTQ+ na Segunda Guerra Mundial.
"Eu nem sabia que (a identidade) existia", disse Bambi à Associated Press em uma rara entrevista. "Eu disse a mim mesma: 'Vou fazer o mesmo.'"
A trupe Carrousel emergiu no final da década de 1940 como uma resistência glamorosa e audaciosa. Bambi logo se juntou a Coccinelle, April Ashley e Capucine em Paris para reavivar a visibilidade queer na Europa pela primeira vez desde que os nazistas destruíram violentamente a próspera cena queer de Berlim na década de 1930.
Os nazistas marcaram homens gays com triângulos cor-de-rosa, deportaram e assassinaram milhares, apagando a cultura queer da noite para o dia. Poucos anos após a guerra, os artistas do Carrousel adentraram o cenário global, uma linha de frente brilhante contra o preconceito persistente.
Surpreendentemente, o público do Carrousel sabia exatamente quem eram essas artistas — mulheres que, como diz Bambi, "revelavam tudo".
Elvis Presley, Ava Gardner, Édith Piaf, Maria Callas e Marlene Dietrich lotavam o cabaré, atraídos pelo charme das artistas rotuladas de "travestis". As estrelas procuravam o Carrousel para flertar com o lado selvagem da Paris do pós-guerra. Era uma contradição inebriante: o travestismo era criminalizado, mas o local estava lotado de celebridades.
A história da libertação queer se transformou neste cabaré, uma lantejoula de cada vez. O contraste era arrepiante: enquanto Bambi chegava a Paris e encontrava fama dançando nu para estrelas de cinema, do outro lado do Canal da Mancha, no início da década de 1950, na Grã-Bretanha, o gênio decifrador de códigos Alan Turing foi castrado quimicamente por ser gay, o que levou ao seu suicídio.
Hoje, Marie-Pierre Pruvot — como também é conhecida — mora sozinha em um apartamento modesto no nordeste de Paris. Suas estantes estão repletas de volumes de literatura e filosofia. Um boá de penas pretas, um sussurro solitário de seu passado glamoroso, pende frouxamente sobre uma cadeira.
Com quase 90 anos, Bambi é a última de uma geração moribunda. Ela sobreviveu a todas as suas irmãs Carrousel — April Ashley, Capucine e Coccinelle.
E embora os holofotes tenham desaparecido, o legado ainda brilha.
Em seu auge, Bambi não era apenas parte do espetáculo; ela era o espetáculo — com expressivos olhos amendoados, rosto em formato de pera e uma beleza indistinguível de qualquer parisiense desejada. No entanto, uma diferença fundamental a diferenciava — uma diferença criminalizada pela lei francesa.
A profundidade de sua história só se torna aparente quando ela aponta para fotografias marcantes e glamourosas e relata noites passadas com lendas.
Tamanha era a fama deles na época que o nome da colega de casa de Bambi, Coccinelle, virou gíria para "trans" em Israel — muitas vezes de forma cruel.
Certa vez, Dietrich, o ícone queer, chegou ao pequeno cabaré Madame Arthur acompanhado de Jean Marais , o ator e amante gay de Jean Cocteau . "Estava lotado", lembrou Bambi. "Jean Marais disse imediatamente: 'Sentem-se (eu e Marlene) no palco'. E assim eles estavam sentados no palco, pernas cruzadas, champanhe ao lado, assistindo à nossa apresentação."
Em outro dia, Dietrich apareceu num salão de cabeleireiro.
"Marlene sempre teve esse ar distante e intocável — exceto quando se atrasava para o cabeleireiro", diz Bambi, sorrindo. "Ela entrou correndo, beijou o cabeleireiro, acomodou-se embaixo do secador, esticou as pernas compridas imperiosamente em um banquinho e acendeu um cigarro. Seu beicinho magro enquanto fumava — nunca vou esquecer", diz ela, exagerando a impressão enquanto sugava as bochechas. Talvez Dietrich não fosse sua estrela favorita.
Depois, houve Piaf, que, certa noite, brincou, provocando, sobre seu protegido, o lendário cantor francês Charles Aznavour , que se apresentaria ali perto. "Ela perguntou: 'A que horas o Aznavour começa?'", lembrou Bambi. "Alguém disse: 'Meia-noite'. Então, ela brincou: 'Então, estará pronto à meia-noite e cinco.'"
Por trás do glamour, havia um perigo constante. Viver abertamente como mulher era ilegal. "Havia um decreto policial", lembra Bambi. "Era crime um homem se vestir como mulher. Mas se você usasse calças e sapatos baixos, não era considerada mulher."
A injustiça era global. A homossexualidade permaneceu criminalizada por décadas: na Grã-Bretanha até 1967, em partes dos EUA até 2003. O progresso foi lento.
Na década de 1950 em Paris, porém, Bambi comprava hormônios casualmente sem receita, "como sal e pimenta no supermercado".
“Era muito mais livre naquela época”, mas havia muito em jogo, ela disse.
Irmãs foram presas, estupradas e forçadas a trabalhar com sexo. Uma camarada morreu após uma cirurgia de redesignação sexual malsucedida em Casablanca.
"Só havia Casablanca", enfatizou ela, com um médico realizando as cirurgias de alto risco. Bambi esperou cautelosamente até que suas melhores amigas, Coccinelle e April Ashley, passassem com segurança pelos procedimentos do final dos anos 50 antes de fazer o mesmo.
Cada noite exigia uma coragem extraordinária. A Paris do pós-guerra era marcada por cicatrizes, assombrada. O Carrousel não era mero entretenimento — mas uma saudação discreta ao passado, de salto alto e delineador.
"Havia um clima pós-guerra — as pessoas queriam se divertir", lembrou Bambi. Sem televisão, os cabarés lotavam todas as noites. "Dava para sentir — as pessoas queriam rir, se divertir, ser felizes. Queriam viver de novo... esquecer as misérias da guerra."
Em 1974, percebendo uma mudança, Bambi se afastou discretamente da fama, não querendo se tornar uma "showgirl envelhecida". Obtendo rapidamente identidade feminina legal na Argélia, tornou-se uma respeitada professora e bolsista da Sorbonne, escondendo seu passado deslumbrante sob Marcel Proust e um anonimato cuidadoso por décadas.
Apesar do que testemunhou, ou talvez por causa disso, ela se mostra notavelmente cética em relação às recentes controvérsias em torno de gênero. Esta pioneira transgênero sente que o wokeismo avançou rápido demais, alimentando uma reação negativa.
Ela vê o presidente dos EUA, Donald Trump, como parte de “uma reação global contra o wokeismo… as famílias não estão prontas… precisamos parar e respirar um pouco antes de seguir em frente novamente”.
Pronomes e linguagem inclusivos "complicam a linguagem", ela insiste. Questionada sobre a postura antitrans da autora J.K. Rowling, sua resposta é calmamente desdenhosa: "A opinião dela não conta mais do que a de um padeiro ou de uma faxineira."
Bambi continua de pé — orgulhoso, elegante, inabalável — em uma vida que vai da Segunda Guerra Mundial a "Harry Potter".
Quando ela pisou no palco pela primeira vez, o mundo não tinha palavras para descrever alguém como ela. Então, ela dançou mesmo assim. Hoje, as palavras existem. Os direitos também. E os movimentos que ela ajudou a inspirar.
"Eu nunca usei máscara", diz ela, suavemente, mas com firmeza. "Exceto quando eu era menino."
ABC News