O editor, com recato, se revela

As memórias de Luiz Schwarcz são narradas a partir de uma recusa: a do autoelogio. O editor, por temperamento e princípio, parece cultivar, tanto voluntária quanto involuntariamente, o recato.
Essa característica, não por acaso, foi citada em algumas das entrevistas concedidas pelo fundador e principal executivo da Companhia das Letras ao longo do último mês para a divulgação de O Primeiro Leitor. Com Luiz Schwarcz , não seria diferente.
Schwarcz me recebeu em sua sala, na sede da editora, no Itaim Bibi, em São Paulo, poucos dias depois de ter estado no programa Roda Viva, da TV Cultura. No centro da roda, dissera: “Tentei fazer uma memória que não é aquela do eu grandioso. Tive esse recato: como fazer um livro de memórias em que eu não fosse o centro”.
Afável no trato e cuidadoso nas respostas, Schwarcz parece, de fato, ser tomado por certo desconforto quando nota que o interlocutor arrisca-se a atribuir-lhe algum tipo de aura: “Eu realmente detesto a ideia de ser colocado num certo pedestal”. Ele prefere, como fica evidente em O Primeiro Leitor, atribuir o sucesso de seu empreendimento ao acaso, ao sonho, à obstinação e às pessoas que cruzaram seu caminho.
O livro, que traz o subtítulo “Ensaio de Memória”, é uma derivação do anterior, O Ar Que Me Falta (2021), definido como “um sensível relato sobre família, culpa e depressão”. Houve amigos-leitores que lhe disseram ter sentido falta, ali, do Luiz editor. É justamente esse Luiz que se desvela no harmonioso conjunto de escritos que compõem O Primeiro Leitor. A conectar os ensaios está algo que, certamente, une também o autor a seus potenciais leitores: o afeto pelo “misterioso produto chamado livro”.
O Primeiro Leitor. Luiz Schwarcz. Companhia das Letras (304 págs., 74,90 reais)
Na sala de Schwarcz há, obviamente, muitos desses produtos. Não tantos a ponto de não haver ali espaço para gravuras, miniaturas e outros objetos e nem tão poucos que se possa, deles, depreender algo sobre a seleção. O Luiz leitor, hoje, exercita sua paixão em algumas horas do dia passadas em casa e, com mais demora, nas férias.
Na entrevista, ele contou que havia terminado A Contagem dos Sonhos, de Chimamanda Ngozi Adichie, autora que, logo depois, chegaria ao Brasil para participar de uma série de eventos, e começado A Pele em Flor, de Vinícius Neves Mariano. Ela é editada pela Companhia das Letras e ele pela Alfaguara – um dos 19 selos do grupo.
A empresa criada em 1986 agigantou-se. Schwarcz lembra que a fundou “com 140 mil reais” e que, de saída, tomou uma decisão pouco usual: não trabalharia com uma distribuidora. “A gente tinha contato com as livrarias, e ia entregar os livros. Entreguei muitos pacotes de livros”, diz, sorrindo. Hoje, o grupo lança 300 livros por ano e tem um depósito de 13 mil metros quadrados na região de Guarulhos, na Grande São Paulo.
Em 2012, a Penguin Random House, maior grupo editorial do mundo, comprou 45% de participação na editora. Em 2018, o controle passou a ser de 70%. Vieram assim os novos selos e uma grande mudança no perfil – que não deixa de espelhar as mudanças pelas quais passou o País nesses 40 anos.
Amizades literárias. Com Paulo Francis, de quem descreve os gestos afetuosos; e com Saramago, que, quando estava em São Paulo, se hospedava na casa do editor – Imagem: Acervo Pessoal/Luiz Schwarcz e Denise Andrade
“Hoje, o maior índice de leitura”, diz, “está nas classes B e C, não na classe A”. Isso se deve, na sua avaliação, tanto às políticas mais amplas de distribuição de renda quanto aos programas de compra de livros pelos governos, que têm papel central na formação de leitores.
“Se a Companhia das Letras seguisse igual depois das políticas de distribuição de renda, teríamos virado uma editora de nicho. E seríamos menos interessantes”, afirma, chamando a atenção para o risco do elitismo, comum nessa atividade. Em O Primeiro Leitor, ele recorda que, ao criar selos populares, a editora recebeu várias críticas – muitas vindas de “leitores que representam as classes trabalhadoras”.
“Os livros comerciais podem ter um tratamento mais superficial dos personagens, mas têm, por outro lado, uma narrativa mais ágil”, reflete o editor que, ao abrir a própria empresa, disse: “Só editarei livros que eu gostar de ler”. Alfredo Machado, fundador da Editora Record, devolveu então: “Ou o gosto desse rapaz é muito ruim ou ele vai perder muito dinheiro”.
Como e por que escolher o que publicar? Embora não seja proposta por Schwarcz, esta pergunta está subjacente em vários de seus textos. O trabalho de um editor contém em si vários trabalhos. E ele os descreve a partir de seu modo de trabalhar, mas também por meio de bonitos perfis – alguns breves, outrso mais longos – de colegas de ofício.
Entre eles estão Alfred Knopf, um apaixonado pela tipologia e pelo acabamento dos livros; Allen Lane, criador da coleção de bolso da Penguin; e os brasileiros José Olympio, Jorge Zahar e Caio Graco – esses dois últimos, centrais na trajetória de Schwarcz, merecem tratamento de “pais postiços”.
“Encontrar bons livros não é mais que a obrigação de um editor”, escreve. Uma das coisas que um editor deve fazer é buscar detalhes escondidos no texto. Não há, porém, a seu ver, qualquer viés artístico ou autoral nisso. E, seja qual for o papel exercido, o mérito do editor terá sido sempre “indireto” e “remoto”.
Nada, para Schwarcz, é mais importante na vida desse profissional do que a descoberta de um talento. Ele não se vangloria dos que descobriu, mas desfruta, nos textos, daquilo que as amizades e as relações com alguns grandes talentos lhe propiciaram.
“Se a Companhia das Letras seguisse igual depois das políticas de distribuição de renda, teríamos virado uma editora de nicho”
Tecidos a partir dos sentidos da amizade, esses ensaios soam, às vezes, a crônicas – marcadas, inclusive, pelo humor, extraído sobretudo de gafes. Ele nos conta histórias de figuras como Susan Sontag, com quem dividia o gosto pela música clássica; Rubem Fonseca, com quem teve um rompimento amargo; Amos Oz, que comparava a escrita de um livro a uma gestação; Paulo Francis, de quem revela os gestos afetuosos; e José Saramago, que, nas vindas a São Paulo, se hospedava em sua na casa.
Ao modo introvertido do autor, muitos desses textos são declarações de amor tanto às pessoas retratadas quanto aos livros – justamente o elo a uni-lo a seus personagens reais.
Foram também os livros o elo a ligá-lo à mãe. Quando, adoentada, sua mãe passava longuíssimas horas deitada, ele lia para ela. O livro que marca sua infância é Os Meninos da Rua Paulo, de Ferenc Molnár. “Voltei de um acampamento, onde sofri bullying, e fiquei de cama. Meu pai me deu esse livro, e me identifiquei muito com o herói.”
Herman Hesse e Charles Dickens foram outros a pavimentar o caminho do jovem leitor que, aos 16 anos, seria arrebatado por O Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto.
O acaso – somado à obstinação e ao sonho – fez com que fosse de Barreto o primeiro livro a editar: a coletânea A Nova Califórnia: Contos, publicado pela Brasiliense, lugar onde seu futuro foi forjado. Décadas depois, caberia à sua mulher, a antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz, a grande biografia do escritor, Lima Barreto – Triste Visionário.
Embora o desenovelar dos afetos responda por boa parte do prazer da leitura de O Primeiro Leitor, há uma segunda camada, muito bem explorada, que é a do retrato do mercado editorial. Luiz Schwarcz sabe tudo dele, e não se furta a dividir seu funcionamento com quem o lê.
“Um livro não é apenas um produto subjetivo, artesanal ou artístico; faz parte, simultaneamente, de uma rede comercial que envolve editoras, livrarias e consumidores”, escreve ele. “Assim, a pergunta que resta é: como os editores podem ser respeitosos com todos esses elementos singulares do livro num mercado em que a competição por exposição e sucesso é cada vez mais selvagem?”
Dentro do grupo que comanda, a competição é, inclusive, interna. “Às vezes, um livro da editora não tem espaço por causa de outro livro da editora”, diz. “Nos anos 1990, a gente tinha boa parte dos livros de literatura. Hoje, vemos editoras pequenas com compromisso exclusivamente literário. E a imprensa também era outra.”
Nova configuração. Atualmente, a lista dos mais vendidos da Amazon tem vários livros que não são lançamentos – Imagem: Redes Sociais
Schwarcz lembra que, 30 anos atrás, era relativamente comum um livro da Companhia das Letras estampar a capa dos cadernos de cultura dos três maiores jornais do País. “Agora isso é impensável”, afirma. A relação da editora com a imprensa era, à altura, tão azeitada que houve até quem alfinetasse: ele era melhor divulgador que editor. Atualmente, a divulgação passa muito pelas redes sociais, pelos influencers e pelos eventos. “Há várias coisas que estranhamos”, admite.
Uma das novas características do mercado é o fato de o sucesso de uma obra poder se dar anos após a publicação. Ele cita a norte-americana Colleen Hoover, tornada um fenômeno no TikTok durante a pandemia. Seu grande sucesso, É Assim Que Acaba, de 2016, foi parar na lista dos mais vendidos em 2022 – e lá permanece.
“A lista dos mais vendidos da Amazon, que domina 50% do mercado, tem vários livros que não são novos”, observa o editor. “Os livros demoram mais para pegar. Com isso, a gente tem de trabalhá-los por muito tempo.” Os autores, por sua vez, têm de subir aos palcos dos festivais literários e, preferencialmente, ter redes sociais – Schwarcz tem uma conta para, basicamente, acompanhar os posts da editora e de Lilia.
Aos 69 anos, o editor que revolucionou o mercado em que atua é uma figura distante daquela que descreve ter sido, em fases da juventude, arrogante e acometido por episódios de mania. Foi o passar do tempo, certamente, que o fez mudar. Mas não o tempo sozinho. O tempo e os livros.
É luminoso o capítulo em que ele recorre a William Faulkner e Georges Simenon para refletir sobre o silêncio e o tempo: “Talvez se possa até dizer que a literatura nada mais é do que o encontro de dois silêncios separados no tempo – o do escritor e o do leitor”. O leitor, para Schwarcz, “habita todo o espaço em branco de um livro”. E se amamos os livros, diz, é “por serem, fora dos divãs, o melhor espelho da nossa imperfeição”. •
Publicado na edição n° 1368 de CartaCapital, em 02 de julho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O editor, com recato, se revela’
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