A Nova Síria

Após meio século de dominação do partido Baath, marcado pelo nacionalismo árabe autocrático, pelas guerras e repressão que o regime impôs à população síria, foi difícil não respirar de alívio com a queda da dinastia Assad. No entanto, o vazio de poder que se seguiu foi recebido com compreensível cautela pela comunidade internacional. A história do Médio Oriente, desde a Revolução Iraniana até à Primavera Árabe, ensina-nos que o que sucede a algo mau pode ser muito pior.
Por isso, surpreendeu o anúncio, feito por Donald Trump em Riade, do levantamento das sanções económicas ao Estado sírio. Não tanto pelo conteúdo, mas pelo timing e, sobretudo, pela aparente ausência de contrapartidas públicas. Pouco depois, a União Europeia seguiu o exemplo, suspendendo medidas restritivas sobre setores-chave como a energia e os transportes.
O racional por detrás desta mudança tem a sua lógica. Após mais de uma década de guerra civil, a Síria precisa urgentemente de ser reanimada. Cerca de 90% da população vive abaixo do limiar da pobreza. Grande parte dos principais centros urbanos, desde Alepo a Homs, encontra-se em ruínas, incluindo infraestruturas críticas como hospitais e estações de tratamento de águas. As carências humanitárias são gritantes. O Estado sírio poderá, agora, financiar-se nos mercados internacionais, atrair investimento estrangeiro e retomar as exportações de petróleo, algodão, têxteis e frutas. Uma eventual estabilização do país poderá permitir o regresso de muitos dos 6 milhões de refugiados que se encontram maioritariamente na Turquia, incluindo jovens qualificados e mão de obra produtiva.
Contudo, atendendo ao histórico do líder do executivo transitório, esta normalização de relações não deixa de ser uma aposta arriscada. Até há poucos meses, Ahmed Al-Chaara liderava o Hay’at Tahrir al-Sham, grupo jihadista com raízes ideológicas na Al-Qaeda, e a administração Biden oferecia uma recompensa de 10 milhões de dólares pela sua captura. Entre 2006 e 2011, foi mesmo um prisioneiro de guerra detido pelas forças norte-americanas no Iraque. Desde então, trocou o turbante e o uniforme militar por um fato com gravata, e foi agora descrito por Trump como “bonito” e “durão”.
No seu papel de líder interino da Síria, Al-Chaara pode ter demonstrado abertura a uma economia de mercado e contenção face aos bombardeamentos israelitas em apoio às comunidades drusas (que talvez se explique menos por prudência e mais por falta de capacidade militar). Contudo, nada sabemos sobre a sua visão quanto à aplicação da sharia, ao papel das mulheres na sociedade, ou ao tratamento das minorias étnicas e religiosas alauitas, curdas, cristãs e drusas. Também não ouvimos da sua parte uma condenação clara dos recentes massacres de comunidades alauitas no noroeste do país, que uma investigação do jornal Le Monde revelou terem ligações diretas às forças do regime. Não sabemos o que versará a nova Constituição sobre a relação entre Estado e religião (irá abraçar a laicidade?), sobre o sistema de governo (haverá salvaguardas ao pluralismo étnico?) e sobre o modelo eleitoral (existirá sufrágio livre, democrático e universal?).
Contra as políticas falhadas de nation-building promovidas pelos neoconservadores no Afeganistão e no Iraque, esta parece ser a oportunidade para Trump tentar moldar o novo regime sírio pela via dos incentivos, e não pela força. Além disso, trazer a Síria para a órbita ocidental enfraqueceria o Irão, que perderia um importante corredor logístico terrestre – um objetivo estratégico para Washington. Porém, causa estranheza que Trump, conhecido pela sua abordagem transacional e realista à diplomacia, não tenha obtido uma contrapartida visível. Não se noticiaram planos para o encerramento das bases militares russas na costa mediterrânica, o desmantelamento dos programas de armamento químico e biológico de Assad, ou a eventual adesão da Síria aos Acordos de Abraão – algo difícil, de resto, dada a recente incursão israelita nos Montes Golã. Há sempre o risco de estarmos apenas a par de parte da história. Mas, por agora, o quid pro quo permanece ausente.
Não esqueçamos que, após a desastrosa retirada americana do Afeganistão em 2021, os Talibã prometeram um tratamento digno para as mulheres. Hoje, sabemos que o seu direito à educação, ao trabalho e à cidadania está cada vez mais condicionado…
Certo é que o pan-arabismo autoritário que marcou a região e as origens sunita-salafistas de Al-Chaara projetam uma longa sombra sobre o futuro da Síria — difícil será caminhar sem pisá-la.
observador