O maior mapa do cérebro em desenvolvimento revela as fases em que os distúrbios neurológicos se originam.
O cérebro humano contém milhares de tipos de células que se formam por meio de processos de desenvolvimento altamente complexos. Compreender como essas células surgem e se organizam tem sido uma tarefa desafiadora, visto que os estados celulares mudam rapidamente ao longo do tempo. Agora, uma série de doze artigos publicados na Nature pelo consórcio internacional BRAIN Initiative Cell Atlas Network (BICAN) oferece o primeiro retrato dinâmico e comparativo do cérebro em desenvolvimento, do rato ao ser humano.
Pesquisadores utilizaram tecnologias de célula única e ferramentas espaciais para rastrear como as células-tronco se transformam em neurônios e células da glia, como a atividade gênica é regulada durante o desenvolvimento e como as experiências sensoriais e o ambiente influenciam a identidade das células cerebrais. Os resultados mostram que os tipos celulares não surgem em fases fixas, mas sim em ondas sobrepostas, e que alguns programas de desenvolvimento podem ser reativados na idade adulta ou em casos de doenças.
“Esses atlas oferecem um mapa detalhado de como diferentes tipos de células cerebrais surgem e amadurecem ao longo do tempo”, explica Hongkui Zeng, diretor de ciências cerebrais do Instituto Allen e coautor sênior. “Ao sabermos quando e onde os genes-chave são ativados durante o desenvolvimento, podemos começar a entender como as interrupções nesse processo levam a distúrbios como o autismo ou a esquizofrenia.”
Os estudos, apoiados pela Iniciativa BRAIN dos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA (NIH), também revelam que a diversificação dos tipos neuronais continua após o nascimento, especialmente nas células GABAérgicas — que regulam a atividade cerebral — e no córtex visual. Nessa região, novos tipos de neurônios se formam durante momentos-chave, como a abertura dos olhos ou as primeiras experiências visuais, demonstrando que as influências sensoriais moldam o desenvolvimento cerebral muito mais do que se pensava anteriormente.

O consumo de açúcar faz com que o cérebro fique mais ativo do que o normal. Foto: iStock
Como Zeng disse à SINC, “a descoberta mais reveladora foi a de que as células cerebrais continuam a mudar e a diversificar-se ao longo do período pós-natal”. Na sua opinião, esta diversificação prolongada “pode ser a base da capacidade do cérebro de aprender, adaptar-se e adquirir novas competências, mas também torná-lo mais vulnerável a influências externas e, ao mesmo tempo, mais capaz de corrigir disfunções”.
Este prolongamento do desenvolvimento, acrescenta ele, “obriga-nos a repensar a forma como compreendemos as causas das perturbações neuropsiquiátricas: diferentes perturbações podem envolver alterações subtis em fases específicas deste processo, afetando certos tipos de células ou mecanismos celulares, o que também abre oportunidades de intervenção”.
Entre as descobertas mais notáveis da equipe do Instituto Allen está a identificação de uma célula progenitora humana que pode estar ligada ao glioblastoma — um tipo de câncer cerebral — e a localização de períodos em que os riscos genéticos de transtornos psiquiátricos estão concentrados.
Processo exclusivo de maturação retardada A comparação do desenvolvimento cerebral entre espécies, de ratos a humanos, permitiu aos pesquisadores identificar tanto características comuns quanto singulares. No entanto, “o aspecto mais difícil de estudar ou modelar o cérebro humano é o seu prolongado desenvolvimento pós-natal, que pode durar cerca de 20 anos, em comparação com 35 dias em ratos”, destaca o pesquisador. “O cérebro humano possui um processo único de maturação tardia, chamado neotenia, que pode ser a base para habilidades como linguagem ou inteligência, mas justamente essa duração torna muito difícil capturá-la experimentalmente.”
Olhando para o futuro, o cientista disse à SINC que o consórcio BICAN pretende "criar mapas abrangentes do desenvolvimento celular em todo o cérebro animal, sobrepor dados humanos disponíveis e alinhar resultados entre espécies para preencher lacunas críticas em nosso conhecimento".
O objetivo, acrescenta ele, “é realizar análises e simulações computacionais em larga escala para compreender as forças moleculares que impulsionam o desenvolvimento cerebral e, a partir daí, iniciar estudos funcionais que expliquem como a sensação, o comportamento e outras funções cerebrais surgem ao longo do tempo”.
O que torna o cérebro humano único? Segundo Zeng, esse esforço terá um triplo impacto: “Primeiro, entenderemos melhor o que torna o cérebro humano único. Segundo, poderemos estudar com mais precisão quando e onde os cérebros afetados por doenças sofrem alterações, tanto em tecido humano quanto em modelos animais. E terceiro, esse conhecimento nos permitirá desenvolver melhores modelos in vitro e terapias gênicas e celulares mais precisas para tratar doenças neuropsiquiátricas.”
A coleção de dados BICAN é um recurso fundamental para futuros estudos que buscam relacionar estágios de desenvolvimento com a vulnerabilidade a doenças. Ela também servirá para aprimorar o design de organoides cerebrais e modelos animais, bem como para desenvolver terapias direcionadas a períodos críticos do desenvolvimento. Embora ainda existam regiões cerebrais a serem estudadas e desafios na integração dos dados, os pesquisadores afirmam que esses atlas iniciais representam um passo decisivo para uma compreensão abrangente do cérebro em desenvolvimento.
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