São João na fogueira

Quando a cidade de Patos apresentou a programação oficial da Festa de São João deste ano, uma das mais conhecidas da região, a Associação dos Forrozeiros da Paraíba divulgou uma nota de repúdio contestando a grade de atrações do evento e exortando o forró tradicional.
Na abertura da manifestação escrita, uma pergunta: “A Paraíba deixou de ter artistas da arte forrozeira?”
As atrações principais da programação de Patos eram as duplas sertanejas Henrique e Juliano e Bruno e Marrone. Dentre os convidados estava ainda o cearense Wesley Safadão, um dos maiores nomes do forró eletrônico, gênero surgido em Fortaleza na década de 1990, com a popularização da banda Mastruz com Leite.
No Nordeste, o forró considerado autêntico é aquele eternizado por Luiz Gonzaga, tendo como elementos-base a sanfona, a zabumba e o triângulo. O forró eletrônico, subgênero do autêntico, incorporou efeitos sonoros, teclados e dançarinos.
“Nada contra nenhum estilo, mas a gente vê a inundação de sertanejo, do funk, da axé e até da música eletrônica nas festas de São João”, diz Alexandre Pé de Serra, cantor e compositor com 25 anos de carreira e dez álbuns gravados, e presidente da Associação dos Forrozeiros da Paraíba.
Ele conta que a entidade tem dialogado com secretários de Cultura dos municípios sobre a valorização do forró autêntico: “O turista de fora vem para o Nordeste para ver a nossa cultura, não o modismo”.
No Vale do Jiquiriçá foi criado, este ano, o Movimento dos Forrozeiros Raiz da Bahia. Seu idealizador, Ednaldo Santana Forrozeiro, diz que, de dez anos para cá, caiu muito a presença de artistas do chamado forró pé de serra nos festejos.
“Isso é uma falta de sensibilidade cultural dos contratantes e gestores públicos”, afirma. Amargosa, no Vale do Jiquiriçá, é considerado um dos municípios baianos mais representativos do forró autêntico.
Um mês antes do início dos festejos juninos, o movimento entregou uma carta ao governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues, alertando para a situação e cobrando a valorização dos artistas locais nos eventos. Um dos pedidos era para que eles fossem priorizados pela Superintendência de Fomento do Estado (Sufotur) nas festas de São João.
Embora critique a presença de outros gêneros em detrimento dos ritmos tradicionais, Ednaldo não torce o nariz para as bandas de forró eletrônico. “A gente chama de ‘forró de plástico’. Não é forró autêntico, mas é forró.”
O pesquisador e crítico de música José Teles explica que o forró, nos anos 1980, formou uma nova geração de forrozeiros, como Jorge de Altinho, Maciel Melo e Petrúcio Amorim. “Embora tenha feito muito sucesso, esse pessoal ficou preso ao modelo antigo do mercado”, avalia.
Cabe observar aqui que a indústria fonográfica passou por uma grande transformação a partir dos anos 1990 – com a pirataria de CDs e, depois, a música digital – e, desde então, os shows foram se tornando a principal fonte de renda dos artistas.
Teles lembra que, naquela época, empresários de forró eletrônico passaram a controlar emissoras e programas de rádio no Nordeste, para divulgar seu cast. “O forrozeiro autêntico ficou preso em vender o CD. Não tinha a mesma estrutura das bandas de forró eletrônico, que foram conquistando público”, explica ele.
Segundo o pesquisador, a nova geração acha que o forró eletrônico tocado hoje é o forró tradicional, pois este fica restrito, em geral, aos palcos secundários das grandes festas juninas, como as de Campina Grande e Caruaru.
Em Pernambuco, há um Projeto de Lei que estabelece porcentual mínimo a ser aplicado na contratação de artistas locais
Os defensores do forró autêntico são unânimes ao afirmar que as festas de São João estão se transformando em grandes festivais com diferentes gêneros musicais, em que as tradições estão sendo deixadas de lado – como trios de forró, cirandeiros e quadrilhas juninas.
Além disso, há uma preferência dos municípios por atrair multidões com artistas de expressão nacional, em detrimento de prestigiar a cultura local.
O Movimento em Defesa dos Sanfoneiros e Trios Pé de Serra de Pernambuco, criado em 2024, pressiona os deputados da Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe) a defender a garantia de espaço para eles nos festejos públicos.
Desde 2023 tramita na Casa um Projeto de Lei que regulamenta a destinação de recursos públicos para as festividades juninas e estabelece porcentual mínimo a ser aplicado na contratação de “artistas e conjuntos musicais que representem a cultura popular do gênero forró”. O texto do PL descreve o “potencial” do forró como “gerador de emprego e renda para a população local”.
“Nessas festas, vem um cara de fora, que não tem nada a ver com a cultura raiz, e reúne 1 milhão de pessoas. Infelizmente, grande parte gosta desses espetáculos”, diz Ruy Sarinho, um dos líderes desse movimento que visa também conscientizar os próprios forrozeiros. “Um dos objetivos principais da criação desse grupo é conscientizar esse pessoal de que, sozinho, não se vai fazer nada.”
Manoel Felipe, que realiza festivais de sanfoneiros desde os anos 1980 no interior de Pernambuco, conta que Afogados da Ingazeira e São José do Egito, no Sertão do Pajeú, são exemplos de cidades que ainda preservam as tradições juninas. “O que a gente quer é manter a essência”, destaca.
As festas juninas acontecem em todos os municípios do Nordeste, a partir de maio, estendendo-se até julho. A descaracterização dos festejos não é nova, mas o fortalecimento dos movimentos que procuram contê-la parece ser. •
Publicado na edição n° 1368 de CartaCapital, em 02 de julho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘São João na fogueira’
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