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O jornalismo é urgente

O jornalismo é urgente

O principal ativo que um jornalista tem não é a disponibilidade de informação nem a sua capacidade de comunicar oralmente ou por escrito: é a credibilidade. O jornalismo é muito relevante na nossa sociedade, essencial numa democracia. Assim se justifica plenamente a existência de um código deontológico do jornalista que, nos tempos que correm, parece ser um ilustre esquecido, mas que todos os portadores da respetiva carteira profissional devem seguir com rigor

O seu artigo primeiro estabelece dois princípios: o princípio da verdade no ato jornalístico e o princípio da separação – que deve ser clara para o leitor – entre peça jornalística e texto de opinião. A violação desta separação inquina a peça jornalística e compromete irreversivelmente a credibilidade do jornalista. Creio que, sem que isto me alegre, é este o tempo que estamos a viver. A assunção do jornalismo de causas, a ideia de que o jornalista deve formar a opinião do leitor, é desastrosa para o jornalismo e não se corrige acusando as redes sociais de todos os males do mundo. O que eu espero de um jornalista não é que me dite o que eu devo pensar, mas que pesquise e me transmita factos.

Um caso concreto: na sequência das recentes eleições o JN publica a 19 de maio um artigo intitulado “Num dia triste para a democracia, PAN segura Inês Sousa Real”, mais tarde corrigido no online com aspas em “dia triste”. O que Inês Sousa Real disse (e que aparece citado no corpo do artigo) é diferente e muda de sentido quando retirado do contexto. A líder do PAN não afirmou que o resultado das eleições foi um dia triste para a democracia, mas sim para “alguns partidos”, o que é uma afirmação natural. Que tenha sido um “dia triste para a democracia” será, admito, a opinião do jornalista, que aparece no meio do que deveria ser apenas uma notícia.

Das tv’s não carece citar exemplos de debates em que o moderador se assume como parte, tratando de forma distinta os oradores ou de intervenções como a de Sandra Felgueiras que, após as eleições afirmou que a grande novidade da noite foi a eleição do deputado do JPP. Como atenuante, aceitemos que os jornais e a rádio são o reduto do jornalismo o qual, nos telejornais, foi há muito substituído pela busca de audiências. Os telejornais são magazines de hora e meia cujo nível de audiências (essencial para vender publicidade) é medido a cada minuto. Importa aqui recordar que o artigo segundo do mesmo código deontológico determina que os jornalistas devem recusar o sensacionalismo. Os jornalistas não são locutores de programas de entretenimento.

Não vale a pena cansar o leitor com centenas de exemplos diários de mistura de opinião com notícia, como a cobertura das presidenciais brasileiras cujos candidatos eram repetidamente referidos como “Lula da Silva, o candidato do PT e Jair Bolsonaro, o candidato da extrema direita”. Há-de notar como, em peças jornalísticas, políticos e partidos de várias geografias são qualificados como de “extrema direita” mas não há ninguém de “extrema esquerda”. Não existe extrema esquerda. Isto é, obviamente uma caracterização que traduz a orientação política de quem escreve e não deveria aparecer numa peça jornalística.

Uma forma sub-reptícia de orientar a publicação de acordo com a opinião de quem escreve está em selecionar ou omitir que eventos se cobrem, transmitindo assim ao leitor uma visão parcial dos factos. Durante anos, quando governos de esquerda praticaram na Argentina uma agenda radical que destruiu a economia, levou o estado à falência e colocou a população na pobreza, não se leu sobre isto uma linha. Não havia uma só notícia, aliás ninguém sabe nomear quem antecedeu a Javier Milei porque nada se reportava nesse tempo. Apareceu Milei e, de imediato, jornais e telejornais lá foram cobrir a campanha do presidente da “direita radical”. Hoje, em 2025, quando os principais números da economia argentina são positivos e o índice de pobreza desce mês a mês, os artigos sobre a Argentina desapareceram outra vez. Nada se escreve sobre a Argentina tal como de nenhum outro país americano de língua espanhola. Aguarde até aparecer um presidente de direita e até do Paraguai chegarão reportagens a denunciar o escândalo.

O código deontológico determina, bem, que “O jornalista deve rejeitar o tratamento discriminatório das pessoas em função da ascendência, cor, etnia…”. No caso da etnia cigana, a interpretação que foi dada nas redações é que a designação da etnia só pode ser usada para notícias positivas e deve ser omitida nas negativas. Faça uma pesquisa com a palavra “cigano” no site de qualquer dos jornais de referência e verá que só aparecem notícias positivas sobre a etnia. As negativas são noticiadas de um modo que já se tornou motivo de chacota “Familiares de doente agridem enfermeiros e provocam estragos no hospital Curry Cabral” (Expresso). Esta discriminação positiva, porque é disso que se trata, não só destrói a credibilidade de quem escreve, mas exacerba a estigmatização social pois o leitor passa a assumir que se trata de uma etnia que tem tratamento de favor e tolerância face à violação da lei. Em última análise, esta opção de redação prejudica a esmagadora maioria dos ciganos que são, obviamente gente trabalhadora, cumpridora e que luta contra a discriminação da qual não tem culpa alguma.

Está por analisar, e seria um interessante trabalho académico, qual a influência que a obsessão de alguma imprensa e tv por dar notícias negativas sobre o Chega teve sobre a sua notoriedade e sobre a sua base eleitoral.

A ideia de que o jornalista não se deve limitar a reportar factos mas deve ir mais fundo formando a opinião do leitor (e, portanto, negando o seu código deontológico) está bem comprovada em estudos independentes, nomeadamente os que foram feitos por ocasião do Covid pela universidade do Minho em 2020 “jornalistas admitem que orientaram cidadãos para o confinamento” (Público) e, em 2023 pela Universidade da Beira Interior “Metade dos jornalistas considera que jornalistas são agentes de desinformação” (RR), no estudo sobre Desinformação e “fact checking”. O estudo da ERC sobre rigor e isenção nos telejornais datado de Janeiro de 2025 afirma “a hibridização dos géneros jornalísticos se tem vindo a revelar uma tendência, surgindo formatos em que informação e opinião se tornam mais indistintos.”

Esta regra em nada se relaciona com os painéis de comentadores e “especialistas” que ganharam imenso espaço mediático e que não são jornalistas. A comunicação social tem toda a liberdade para convidar os comentadores que entende e não tem sequer a obrigação de ter um painel equilibrado de comentadores. Nada impede um jornal de ter apenas artigos de opinião de autores que pensam à esquerda, à direita ou que a terra é plana. Conviria é que isso ficasse claro no estatuto editorial.

Também nada impede que um jornalista exprima a sua opinião em colunas ou programas em que isso fique claro para o leitor. O problema aqui é outro: quando temos um jornalista a entrar-nos pela casa adentro a manifestar-se a favor ou contra uma causa, que credibilidade daremos ao que ele escreve na qualidade de jornalista no dia seguinte?

Uma etapa, notória, da descredibilização do jornalismo e de violação do que determina o estatuto quanto ao sensacionalismo é a forma como o clima é noticiado. Expressões como primavera, verão, outono e inverno desapareceram de textos e reportagens, substituídas que foram por “rios atmosféricos”, “frio polar” e alertas de todas as cores. Uma tv afirmava recentemente que as alterações climáticas são a explicação para as chuvas na primavera. Ficamos a pensar o que é que justificará o frio no inverno e o calor no verão: serão as alterações climáticas decerto. Aqui a gravidade é dupla: é que com tanto folclore, o leitor descrê das verdadeiras alterações do clima, que existem e estão bem documentadas, mas não transparecem das notícias.

Este tempo do “jornalismo de causas” coincide com um outro: o das redes sociais e da internet que permitem que o leitor busque informação onde melhor entender, nomeadamente que a vá buscar diretamente na fonte. O código deontológico é muito claro, novamente bem, quando afirma que “o jornalista deve combater a censura”. Ora, sob a capa suave do combate ao discurso de ódio ou da proteção do leitor”, vai fazendo caminho a ideia de que é preciso “regulamentar” a liberdade de expressão. Os jornalistas deveriam ser os primeiros a sinalizar estas suaves tentativas de aplicar a censura. E não são. Quando a Comissão Europeia proibiu os media russos de transmitirem para a UE, ninguém se movimentou. O argumento foi a proteção do leitor face à propaganda. A menorização do leitor, incapaz de pensar por si: exactamente o que o Estado Novo fazia entre nós. Quando os políticos pedem a “regulamentação” das redes sociais, na prática pedem censura. Leu algum editorial a indignar-se e a afirmar a liberdade de expressão como essencial?

É justo notar que a crise brutal com que o modelo de negócio da comunicação social se defronta tem uma série de causas, nomeadamente tecnológicas e a degradação de hábitos de leitura e é ela própria um grande obstáculo para o bom jornalismo. As redações são pessimamente pagas, não há meios para fazer jornalismo de investigação e menos ainda para enviar repórteres onde a notícia acontece, pior se for no estrangeiro.

A saída desta crise tem certamente vários caminhos, mas, nenhum deles deixará de passar pela procura incessante da objetividade que sustente a credibilidade.

A democracia não carece de quem escreva textos e menos ainda de quem nos diga como devemos pensar. Precisa é de jornalismo. E com urgência.

Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não refletem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.

observador

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