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'Apocalypse Now': a história por trás das filmagens mais violentas da história do cinema

'Apocalypse Now': a história por trás das filmagens mais violentas da história do cinema

Martin Sheen sofreu um ataque cardíaco durante a filmagem de uma cena dramática do filme
Foto: Alamy / BBC News Brasil

"Fizemos de forma muito parecida com a dos [soldados] americanos no Vietnã", explicou o diretor Francis Ford Coppola sobre a filmagem de Apocalypse Now (1979) após sua exibição no Festival de Cannes, na França.

"Estávamos na selva. Éramos muitos. Tínhamos acesso a muito dinheiro, muito equipamento e, pouco a pouco, fomos enlouquecendo."

A imprensa documentou, na época, a atribulada produção do épico brutal e psicodélico de Coppola, desde os problemas financeiros até a substituição de atores, questões de saúde e o clima extremo.

Mas a verdadeira extensão do caos só ficaria clara em 1991, com o lançamento do documentário Francis Ford Coppola: O Apocalipse de um Cineasta.

O filme teve como base as extensas imagens produzidas durante as filmagens feitas pela esposa do diretor, Eleanor Coppola (1936-2024). Elas ilustram uma produção com escopo, visão e ambição espetaculares, mas igualmente confusa, marcada pelo uso de drogas e repleta de contratempos aparentemente insuperáveis.

Dois jovens diretores — Fax Bahr e George Hickenlooper (1963-2010) — receberam a tarefa de analisar todas as imagens, rolo após rolo, para dar sentido àquela maluquice e contar a envolvente história da produção do filme.

O documentário foi agora restaurado em 4K e voltou aos cinemas dos Estados Unidos e da Europa.

Bahr ainda se lembra do primeiro dia em que viu as filmagens de Eleanor Coppola, que ficaram esquecidas e praticamente intocadas por mais de uma década.

"Havia alguns relatos que diziam 'oh, existe muita coisa fora de foco'", conta ele à BBC. "Mas os rolos que observamos eram extraordinários."

"Apenas belas filmagens. Claramente, ela havia gravado copiosamente tudo o que estava acontecendo. Era uma verdadeira mina de ouro."

A longa lista de problemas

Apocalypse Now é uma adaptação livre do romance Coração das Trevas (Ed. Cia. de Bolso, 2008), de Joseph Conrad (1857-1924), publicado originalmente em 1899.

O filme é considerado uma das maiores obras da história do cinema, mas sua produção quase se desintegrou em diversos estágios.

Quando as filmagens começaram nas Filipinas, em março de 1976, elas estavam programadas para durar cinco meses. Mas acabaram levando mais de um ano.

Coppola demitiu seu principal ator, Harvey Keitel, poucas semanas depois do início das filmagens. Ele foi substituído por Martin Sheen, que sofreu um ataque cardíaco durante a produção — que, por pouco, não foi fatal.

Um tufão destruiu completamente cenários de alto custo e alguns atores foram infectados por parasitas. Outros participaram de festas e consumiram drogas durante as filmagens.

Marlon Brando (1924-2004) interpretava o coronel Kurtz, ausente das forças armadas sem licença. Mas o ator apareceu para as filmagens muito acima do peso e totalmente despreparado, levando Coppola a reescrever e filmar o fim do longa de acordo com as suas condições.

Com o passar do tempo, o filme ultrapassou em muito seu orçamento. Coppola assumiu para si o financiamento da obra — e teria ficado arruinado, se não tivesse recuperado o dinheiro.

Eleanor Coppola afirma no seu livro Notes on the Making of Apocalypse Now ("Notas sobre a produção de Apocalypse Now", em tradução livre) que, mesmo depois do fim das filmagens, durante a pós-produção, Coppola acreditava que tinha apenas 20% de probabilidade de montar um filme viável com o resultado das filmagens.

As filmagens de Apocalypse Now deveriam ter durado cinco meses, mas foi preciso mais de um ano para terminá-las
As filmagens de Apocalypse Now deveriam ter durado cinco meses, mas foi preciso mais de um ano para terminá-las
Foto: Alamy / BBC News Brasil

O documentário mostra uma produção que pretendia recriar a Guerra do Vietnã (1955-1975). E, de muitas formas, ela acabou espelhando muitos padrões de comportamento idênticos aos verificados entre os soldados combatentes.

O fotojornalista e fotógrafo de guerra holandês Chas Gerretsen tem a experiência necessária para fazer esta comparação. Ele vivenciou o set de filmagem por seis meses e seus resultados foram compilados no livro Apocalypse Now: The Lost Photo Archive ("Apocalypse Now: o arquivo de fotos perdido", em tradução livre), de 2021.

"O Vietnã foi insano. Apocalypse Now, um pouco menos que isso", declarou Gerretsen à BBC.

As condições adversas eram totalmente exóticas para a maioria das pessoas que participaram do filme.

"A equipe se queixava muito do calor, da umidade, dos quartos de hotel, percevejos e mosquitos", ele conta. "A lama — às vezes, na altura dos joelhos — era um verdadeiro desafio."

Damien Leake interpretou no filme um operador de metralhadora. Ele participou das filmagens por três semanas e também se lembra do ambiente físico como sendo algo que ele nunca havia visto antes.

"A primeira coisa de que me lembro é de sair do avião e sentir a umidade como se fosse um pano molhado", conta ele à BBC. "Criado em Nova York [EUA], sei o que é umidade, mas aquilo era inacreditável."

A água para beber não era segura para consumo, lagartixas subiam pelas paredes da cabana onde ele se hospedou e o clima era bíblico, segundo ele.

"Chovia todos os dias", relembra Leake. "Chovia como se o clima estivesse com raiva de você. Chovia em lâminas, como eu nunca havia visto antes."

'Pouco a pouco, fomos enlouquecendo', declarou Francis Ford Coppola sobre as filmagens de Apocalypse Now, que ganhou projeção depois de ganhar a Palma de Ouro do Festival de Cannes, na França, de 1979
'Pouco a pouco, fomos enlouquecendo', declarou Francis Ford Coppola sobre as filmagens de Apocalypse Now, que ganhou projeção depois de ganhar a Palma de Ouro do Festival de Cannes, na França, de 1979
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

À medida que a produção se arrastava, tudo ficava mais difícil para a equipe de produção e os atores, que começaram a sentir saudades de casa.

"Eles eram muito parecidos com os soldados do Vietnã, que nunca haviam saído de casa para nenhum lugar mais longe que o Canadá", relembra Gerretsen. "Havia muitos com saudade de casa."

"Um membro da equipe ia para Manila [a capital filipina] quase todos os fins de semana — uma viagem de três a quatro horas, só de ida, em uma estrada ruim. Ele ficava em um quarto de hotel com vista para o aeroporto, só para observar os voos saindo para os Estados Unidos."

A visão de Coppola desmoronava cada vez mais com o passar do tempo. Ele não conseguia particularmente decidir qual seria o final do filme. Tanto é assim que, até hoje, o fim do longa varia nas suas diferentes edições e versões.

"Eu chamava o filme de a idiodisseia", declarou Coppola na época, como ficou gravado no documentário. "Nenhuma das minhas ferramentas, nenhum dos meus truques, nenhuma das minhas formas de fazer funciona para este final."

"Tentei tantas vezes que sei que não posso fazer. Pode ter sido uma grande vitória saber que não consigo fazer. Não consigo escrever o final deste filme."

Mas seus atores aparentemente mantiveram seu compromisso e sua fidelidade.

"Os atores andariam sobre o fogo por Francis" se fosse preciso, conta Leake, "porque ele dava muita liberdade e um sentido de que eles conseguiriam fazer aquilo [aquela cena/personagem] sozinhos."

"Ele então moldava aquilo no que ele queria. Você não pode pedir mais do que isso."

Durante as filmagens, Coppola alterou o roteiro muitas vezes e não conseguia se decidir pelo final. Mas seu elenco se manteve fiel ao diretor, mesmo com todos os tropeços.
Durante as filmagens, Coppola alterou o roteiro muitas vezes e não conseguia se decidir pelo final. Mas seu elenco se manteve fiel ao diretor, mesmo com todos os tropeços.
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Enquanto muitos sofriam com a saudade de casa, a experiência de Leake foi diferente. Ele relembra seu tempo durante as filmagens como "as três semanas mais gloriosas da minha vida".

"Eu saía para me encontrar com os filipinos, que eu adorava", ele conta. "Eu os achava maravilhosos."

"Eu me apaixonei por uma bela garota e, se tivesse um papel maior no filme, provavelmente estaria lá até hoje. Adorei aquilo."

A história nos bastidores

Quando Bahr começou a examinar as imagens, ele percebeu o milagre que foi a existência do filme em si.

"Eu sabia que tinha sido um extremo desafio extrair aquele filme, mas, só mergulhando nos pormenores das filmagens, é possível realmente entender os horríveis obstáculos que eles enfrentaram", afirma Bahr.

A própria tarefa de contar a história por trás da história foi um desafio único. Ele precisou pesquisar cerca de 80 horas de filmagens.

"O primeiro corte do documentário tinha quatro horas e meia", relembra Bahr, "porque Ellie [Coppola] continuou filmando após o término da produção e tínhamos um capítulo pós-produção completo [no corte original]."

É claro que ocorreram muitos dramas naquele processo, mesmo quando Coppola e sua equipe saíam da selva e voltavam ao conforto do estúdio.

"Um dos editores se escondeu com a cópia em um quarto de hotel", relembra Bahr. "Ninguém conseguia encontrá-lo e eles pensaram que tudo havia sido roubado."

"Ele, então, devolveu celuloides queimados em envelopes, dizendo: 'Estou me livrando do filme, cena por cena'. Eles estavam simplesmente perdendo a cabeça."

Felizmente, as diferenças criativas que causaram o rompimento foram resolvidas, antes que surgisse algum dano mais sério.

Marlon Brando (1924-2004) chegou ao set de filmagem muito acima do seu peso e mal preparado para interpretar o papel
Marlon Brando (1924-2004) chegou ao set de filmagem muito acima do seu peso e mal preparado para interpretar o papel
Foto: Alamy / BBC News Brasil

Bahr relembra o momento em que ficou sabendo que o documentário havia descoberto algo fundamental.

"A descoberta das fitas de áudio de Francis, feitas por Ellie, foi reveladora." Ele se refere às gravações de áudio que aparecem no documentário sobre cenas do filme.

"Ellie era a única pessoa do mundo capaz de capturar Francis daquela forma, tão próxima e pessoal", segundo Bahr.

"Aquilo coloca você em contato com um mestre americano nos seus momentos mais privados. Foi uma visão real do próprio centro de criatividade: suas dúvidas, preocupações, angústias e seu trabalho com estas ideias. Foi incrivelmente especial."

Coppola deu a Bahr e Hickenlooper sua bênção para fazerem o que quisessem com as filmagens. Sua única instrução foi: sejam honestos.

"Ele disse 'há algumas coisas feias que aconteceram aqui, mas, se vocês contarem a história honestamente, terão o meu apoio'", relembra Bahr.

O único pedido que ele fez foi que a narração, feita por um locutor, fosse regravada pela sua esposa. Afinal, o material era dela e, de muitas formas, aquela era uma história vista pelos olhos dela.

A jogada de mestre final fez com que o documentário se parecesse ainda mais com a visão de alguém que estava do lado de dentro das filmagens.

O documentário é um olhar íntimo das filmagens de Apocalypse Now, através dos olhos da esposa do diretor, Eleanor Coppola (1936-2024)
O documentário é um olhar íntimo das filmagens de Apocalypse Now, através dos olhos da esposa do diretor, Eleanor Coppola (1936-2024)
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

"A melhor impressão que recebo sobre o documentário é que ele é um acessório necessário para compreender Apocalypse Now", segundo Bahr.

"As pessoas dizem 'bem, eu vi Apocalypse Now e adorei, mas, depois de ver seu documentário, entendo de forma mais abrangente'. Este é o melhor elogio possível."

Para Bahr, Apocalypse Now é totalmente único.

"Foi um filme único na história da cinematografia", segundo ele. "Não acho que alguém, algum dia, irá conseguir fazer algo como aquilo de novo."

"Não só porque Francis estava pronto para apostar toda a sua fortuna no filme, mas também devido à ambição. Quero dizer, ele se dispôs a ir até as Filipinas, recriar o Vietnã para a equipe e fazer com que toda a companhia passasse por aquela experiência. Era uma visão brilhante."

Para Gerretsen, suas experiências se tornaram algo quase impossível de se diferenciar das suas lembranças das verdadeiras zonas de guerra.

"As explosões, a fumaça colorida, as horas de espera para formar a cena — tudo é misturado", explica ele.

Quando Guerretsen assistiu ao filme pronto, o impacto foi significativo.

"Foi incrível como ele trouxe tudo de volta", segundo ele. "Era uma obra-prima, sem dúvida, mas só consegui assistir de novo vários anos depois."

"As guerras do Vietnã e do Camboja [1967-1975], além de Apocalypse Now, continuam comigo porque a insanidade da guerra ainda está entre nós."

Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Culture.

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