Santiago Muñoz Machado, diretor da RAE (Real Academia Espanhola): "Destruir a língua não acaba com a discriminação."

O jurista espanhol Santiago Muñoz Machado (Pozoblanco, 1949) preside a Real Academia Espanhola (RAE) e afirma a tradição que o liga a outros membros daquele órgão que também não provêm da linguística, da filologia ou da literatura. Ele afirmou na tarde de sexta-feira, na sede da Academia Argentina de Letras (AAL) , onde tem uma agenda de reuniões lotada, que "a Academia tem juristas há 300 anos, porque juristas são pessoas que brincam com as palavras". e estamos sempre refletindo sobre a linguagem."
O diretor da RAE e presidente da @ASALEinforma , Santiago Muñoz Machado, tomou posse como membro correspondente da Academia Argentina de Letras ( @canalaal ): https://t.co/NWR5ZybSpU . pic.twitter.com/rFcDQqy7Sj
— RAE (@RAEinforma) 18 de julho de 2025
A presença de Muñoz Machado em Buenos Aires, agora, e no Chile nos próximos dias, tem um duplo propósito: por um lado, apresentar seu monumental ensaio de mil páginas , *De la democracia en Hispanoamérica *, que traça uma genealogia dos sistemas republicanos da região e analisa as fragilidades históricas que impediram a estabilização desse sistema de governo. Ele o fez há poucos dias na Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires, em um evento organizado pelas Academias Nacionais de Letras, Direito e Ciências Morais e Políticas.
Mas o intelectual, que é professor da Universidade Complutense de Madri, da Universidade de Valência e da Universidade de Alcalá de Henares, e presidente da Associação de Academias da Língua Espanhola (ASALE), também dedica parte do seu tempo a falar sobre a RAE (Real Academia Espanhola de Espanhol), qual é o seu papel, se rege ou não a língua e os desafios que o espanhol enfrenta diante da inteligência artificial . Conversei com o Clarín sobre tudo isso.
O atual diretor da Real Academia Espanhola, Santiago Muñoz Machado, posa para uma foto na Academia Argentina Letras. Foto: Mariana Nedelcu.
– Os artigos que publicamos sobre linguagem tendem a gerar muito interesse entre os leitores. Qual é a sua hipótese sobre esse foco na linguagem?
Essas coisas também acontecem na Espanha. Temos a Fundación del Español Urgente (Fundeu), patrocinada pela Agência EFE e pela Academia, cuja missão é promover o uso adequado do espanhol na mídia. Ela publica um artigo diário dedicado a uma palavra. Alguns jornais têm uma seção regular para esses artigos, e ela é amplamente seguida. Além disso, há pelo menos três ou quatro grandes programas de televisão dedicados às palavras: Pasapalabra, Cifras y letras e outros. Minha hipótese é que nos comunicamos com a língua todos os dias, que ela permeia nossas vidas, que ela nos une mais como povo e que nos identifica. Portanto, é natural que nos interessemos. No caso da RAE (Real Academia Espanhola de Estudos Espanhóis), é uma instituição muito antiga, com 300 anos de trabalho, e que fez um grande trabalho pela língua. Temos bons motivos para nos orgulhar do que fizemos. Ela mantém um prestígio muito importante, não porque tenhamos algum poder de sanção para aqueles que quebram as regras, mas por causa de sua "auctoritas", a autoridade gerada pelo respeito conquistado ao longo dos anos.
A RAE mantém um prestígio muito importante, não porque tenhamos algum poder de sanção, mas por causa da autoridade que vem do respeito conquistado.
– O senhor é um presidente com um perfil que se distancia de disciplinas tradicionais como linguística ou filologia, e também não é um contador de histórias nem um poeta. O que a perspectiva de um jurista, que não tem sido a opinião majoritária do último século, contribui para a RAE?
– Se me permitem, discordo de um ponto, pois a Academia teve juristas ao longo dos seus 300 anos de existência. Nós, juristas, somos pessoas que brincam com as palavras e estamos sempre a refletir sobre a linguagem. Somos todos a favor da argumentação; precisamos de palavras para nos expressarmos na nossa profissão. Dizem que é uma profissão eloquente. Portanto, houve muitos académicos desta disciplina, mas não só. O Diccionario de Autoridades, que foi o primeiro dicionário publicado pela Academia, entre 1726 e 1739, é composto por palavras da literatura básica da época, mas também da legislação em vigor na época. Isto é frequentemente esquecido, mas Dom Quixote e a Compilação das Leis das Índias foram igualmente valiosos. Portanto, houve uma presença significativa de juristas na RAE. Agora, qual a contribuição de um jurista? Em primeiro lugar, para liderar a Academia, não se deve esquecer os propósitos básicos da instituição, pois, por mais especializada que seja, esta é uma comunidade na qual a especialidade se perde em benefício do todo. Ao longo dos anos, pela primeira vez na história da Academia, produzimos um dicionário especializado, neste caso um dicionário jurídico, e publicaremos mais com o tempo. Acredito também que, da perspectiva de alguém que não é estritamente linguista, a RAE tem uma visão mais generalista, mais intimamente ligada às diferentes expressões da sociedade.
– Durante o seu primeiro mandato (2018-2022), o senhor teve que lidar com uma grave crise financeira. Por que a RAE estava com falta de recursos?
Quando cheguei à Academia como diretor, comecei em uma situação financeira muito difícil, pois o governo nacional havia reduzido significativamente a ajuda que recebíamos. Naquele dia, diante da imprensa, disse que a Academia era uma questão de Estado. E expliquei que os recursos da RAE para realizar seu trabalho e interagir com outras academias de idiomas ao redor do mundo eram uma questão na qual estávamos colocando em jogo o melhor da nossa cultura. Não há nada mais importante na cultura compartilhada que temos com a América do que a língua, e a instituição mais importante nesse sentido é a Real Academia Espanhola. Posteriormente, solicitei uma audiência com o Presidente do Governo e lhe disse a mesma coisa. E embora as coisas tenham melhorado a partir de então, também me envolvi com a sociedade civil de muitas maneiras, porque interagimos com muitas instituições e empresas que responderam. Agora, estamos em uma situação melhor; temos dinheiro suficiente para desenvolver os projetos em que estamos envolvidos.
O atual diretor da Real Academia Espanhola, Santiago Muñoz Machado, posa para uma foto na Academia Argentina Letras. Foto: Mariana Nedelcu.
– Você admitiu em uma entrevista recente que muitas pessoas não entendem realmente o que a RAE faz. Há pouco, você esclareceu que não sai por aí punindo quem usa a linguagem de forma incorreta. Então, o que exatamente a RAE faz?
– A RAE é uma entidade de direito público. Isso significa que é uma associação privada com estatutos aprovados pelo governo e que recebe alguns recursos públicos, mas não tem vínculo com o poder político. É uma associação completamente independente que se concentra em um segmento da cultura espanhola: a língua. É uma entidade desse tipo porque é impossível que a língua, como a cultura, seja governada por alguém, nem que haja "instruções" de um poder sobre como ela deve ou não ser falada. O que a Academia faz é o mesmo que tem feito ao longo de sua história, concentrando-se em três obras fundamentais, que funcionam como as grandes catedrais sobre as quais a língua se constrói: de um lado, o dicionário; depois, a gramática; e, por fim, a ortografia. Estas permaneceram obras essenciais ao longo do tempo, o serviço que prestam ao espanhol. Como isso é feito? Bem, tem feito o oposto do que muitos acreditam. Não é a Academia que se reúne às quintas-feiras para decidir como os falantes de espanhol devem falar; Pelo contrário, toma nota de como os falantes de espanhol falam para construir suas próprias normas com base nessa observação. Como isso é feito? Porque temos "espiões" em todo o mundo que nos dizem como as pessoas falam lá. São as universidades argentina, chilena, mexicana e espanhola, onde há pessoas que nos transmitem palavras e o contexto em que são usadas. Esse material acaba em nossos corpora linguísticos, que têm milhões de unidades que nos permitem, sempre que consideramos definir uma palavra para adicioná-la ao dicionário, detectar como ela é usada (por exemplo, se é insultuosa ou depreciativa) e o contexto em que é comumente usada em cada lugar. Isso também nos permite registrar a língua espanhola em uso, entender como a língua é usada e, a partir daí, incorporá-la ao nosso padrão para propor que seja amplamente adotada e que as pessoas a considerem a língua padrão.
– Há alguns anos, com a linguagem inclusiva, surgiu a ideia de que, modificando a língua, gerando novas declinações, eliminando algumas formas genéricas masculinas, era possível transformar a sociedade e também minimizar o machismo. Você acredita que a linguagem tem esse poder transformador em uma sociedade?
– O poder da linguagem é indiscutível. O uso da linguagem como ferramenta de poder pela classe política, por governos, por instituições ou por associações que exercem poder na sociedade é indiscutível. Mas é importante não exagerar. O poder público não pode impor modos de falar. As únicas vezes na história em que isso aconteceu foram durante a era do fascismo ou de regimes autoritários. Portanto, instituições independentes como as academias devem ditar as regras. O que aconteceu com a linguagem inclusiva é que alguns grupos, com muito boas intenções, pensaram que a linguagem pode ser fundamental para alcançar o desaparecimento repentino de todas as formas de discriminação com base em gênero ou sexo. Bem, espero que sim. É verdade que existem muitas formas de discriminação que aparecem na linguagem. Na Academia, por exemplo, fizemos correções significativas no dicionário, porque havia definições que começavam com "homem" e menosprezavam as mulheres ou usavam o masculino incorretamente para se referir a profissões. Por exemplo, a definição de "juiz" era "a esposa do juiz". Corrigimos tudo isso, e é verdade que podemos tentar evitar a masculinização excessiva da linguagem, mas sem abandonar seu sistema. Nossa linguagem é tão bela e merece manter algumas ferramentas, como o masculino genérico, do qual é muito difícil prescindir. É por isso que a Academia afirma estar disposta a fazer todo o possível para alcançar esse objetivo de igualdade de gênero. E o que ela prossegue afirmando é que a linguagem não é culpada por essa discriminação e, portanto, não deve ser penalizada para atingir objetivos que não serão alcançados com sua destruição.
É verdade que podemos tentar evitar a masculinização excessiva da linguagem, mas sem abandonar seu regime.
– Em 2020, a RAE publicou o documento “Relatório da Real Academia Espanhola sobre linguagem inclusiva e questões relacionadas”, no qual rejeita o uso de x, @ ou e para apagar declinações que marcam gênero. Essa foi uma decisão unânime entre todos os membros da instituição?
– Houve praticamente unanimidade, sim. Talvez alguns acadêmicos, um pouco mais inclinados a fazer concessões, sustentassem que o sistema linguístico é um macroconceito superior às variedades específicas de cada momento. Por exemplo, foi o que aconteceu com algumas formas femininas como "membre" / "miembra", sobre as quais alguns acadêmicos disseram que não há mal algum em usá-las porque são bem construídas do ponto de vista gramatical. Alguns são mais abertos, enquanto outros dizem que nem pensar, porque não é assim na prática. Essa é a chave com a qual trabalhamos. A linguagem pode mudar muito como resultado desse tipo de reivindicação de gênero ou por causa da forma como os jovens falam. Ela pode mudar, e quando mudar, nós a incorporaremos, mas isso só acontecerá depois de verificar essa mudança.
– Os jovens são um grupo que se permite transformar bastante a linguagem, incorporando palavras de outras línguas, modificando-as e até mesmo inventando-as. Você já analisou o quanto disso persiste ao longo do tempo e acaba sendo incorporado?
– Há muitas coisas que posso dizer sobre este assunto. Primeiro, quero expressar a nossa convicção de que a nossa língua sempre foi híbrida, sempre aparecendo misturada com muitas formas que vêm de outras línguas, e nada nos aconteceu até agora por causa disso. Esta queixa sobre nós, por exemplo, admitirmos muitos neologismos anglo-saxões. Bem, antes nós os tomávamos emprestados do árabe, depois do hebraico, e mais tarde do francês e do espanhol, é composta por tudo isso. No caso dos jovens, veremos o que todas essas variantes produzem. Por enquanto, estamos estudando-as, acompanhando-as, e elas nos importam, é claro. E veremos se é algo bastante efêmero, com tendência a desaparecer, ou se algumas dessas coisas permanecem. De fato, levamos em conta a natureza efêmera das inovações, e é por isso que tentamos nunca nos apressar e esperar antes de ecoar qualquer uma dessas mudanças. No entanto, sempre partimos da ideia de que a língua evolui. Embora tenhamos constatado que ela evolui muito lentamente e que as mudanças linguísticas levam muitos anos, agora, quando vemos essas mudanças e quando elas realmente ocorrem, respondemos a elas modificando nossas próprias normas, primeiro incorporando-as ao dicionário, que é o primeiro ponto de entrada para as normas acadêmicas. Também é verdade que nossos seguidores às vezes reclamam que nos apressamos em incorporar neologismos. É por isso que uma das coisas que fizemos agora com inteligência artificial foi usar programas para criar observatórios de neologismos, que rastreiam a imprensa mais significativa em todos os países de língua espanhola para identificar desenvolvimentos linguísticos dos quais não temos conhecimento. Isso nos permite estudá-los e ver até que ponto estão se consolidando, até que ponto podemos incorporá-los em nossos trabalhos e continuar aprimorando e modificando o dicionário.
O atual diretor da Real Academia Espanhola, Santiago Muñoz Machado, posa para uma foto na Academia Argentina Letras. Foto: Mariana Nedelcu.
– Você tem sido bastante cauteloso com o espanhol usado pelas máquinas. O que a RAE tem a dizer ou fazer a respeito?
– Temos estado muito preocupados com este fenómeno porque me pareceu que a inteligência artificial é realmente uma ajuda extraordinária para os nossos serviços: para melhorar o desempenho dos serviços, para identificar neologismos, para responder a questões linguísticas, para revisores... pode ser uma ferramenta fundamental. Mas, ao mesmo tempo, tem o perigo fundamental de que a língua falada pelas máquinas seja uma língua decidida pelos construtores de algoritmos, e estes possam fazer mau uso da língua e até mesmo arruiná-la. A minha preocupação tem sido esta: durante 300 anos, conseguimos manter a unidade do espanhol, com o esforço que isso implica numa geografia imensa. Seria bom que as máquinas viessem agora fragmentá-la. É por isso que o que fizemos foi tentar dialogar com as grandes empresas tecnológicas para que sigam as nossas regras e treinem as suas máquinas com elas. E, nesse sentido, tem funcionado porque a ligação foi feita, e assim como temos a promessa de que o farão. O resultado final que agora apreciamos, e que está ao alcance de todos, é que as máquinas que usam a nossa língua não o fazem mal.
– Menos bem-sucedida e unânime é a questão dos acentos diacríticos em palavras como "solo" ou "esta". Há acadêmicos que não obedecem à RAE (Real Academia Espanhola da Língua Espanhola). Quão íntima é essa disputa que acadêmicos como o narrador e jornalista Arturo Pérez Reverte trazem para as redes sociais?
– Esta é uma história que nos diverte. Nos divertimos com o fato de o acento ter se tornado uma questão de debate internacional. Embora nos divirtamos, digamos que também há algo que nos incomoda, porque parece que a RAE só aborda o acento quando ele faz tantas coisas que, no fim das contas, não chamam a atenção porque as pessoas se distraem com essas piadas, que são uma questão muito menor. Nesse sentido, ainda existem protestos, e há pessoas que ignoram a regra, embora deva ser dito que a regra da Academia acabou se tornando muito flexível, porque diz que o acento pode ser usado para enfatizar um significado ou outro. E assim permaneceu. Não vamos monitorar quantas pessoas adicionam acentos e quantas os removem. Não temos inspetores de acentos.
Visita institucional do diretor da RAE e presidente da ASALE à República Argentina e à República do Chile: https://t.co/qfM1iWbkpp . pic.twitter.com/JoziGxWVl1
— RAE (@RAEinforma) 14 de julho de 2025
– A última pergunta é menos interessante. Na Espanha e em outros países de língua espanhola, existem movimentos políticos que defendem um certo purismo (identitário, nacional, familiar) que se opõe ao dos "estranhos". A língua também pode ser um elemento de exclusão nesse sentido?
Pode haver racistas, embora na RAE não haja nenhum. Ninguém jamais pensou em menosprezar um falante de espanhol ou uma pessoa que adquiriu conhecimento de espanhol pela maneira como o pronuncia ou como o diz. Eles são respeitados e, se seu uso for deficiente, tentam ensiná-lo. Eu moro em Madri, que é uma cidade muito cosmopolita e tolerante, então não notamos diferenças entre as pessoas com base em onde nasceram. Pelo contrário, surgem fortes reações contra qualquer um que tente impor essas diferenças com base na origem. Na RAE, usamos o conceito de pan-hispânico para nos referirmos a uma língua específica de cada um desses países. O espanhol da Espanha, ou o da Argentina, ou o do Chile são dessa nação. Não são línguas emprestadas. Somos a pátria dessa língua, mas a língua é específica de cada um desses países. E o pan-hispânico é uma ideologia que nos permite trabalhar juntos em suas regulamentações. E fazemos isso com um rigor que as pessoas nem imaginam o quão quase milagroso é, porque conseguimos chegar a um acordo entre todos esses países sobre qualquer modificação de um padrão linguístico, já que ele passa por todas as academias antes de ser aprovado. Este é o nosso maior poder diplomático, porque temos um caminho consensual, amigável, respeitoso e tolerante para a penetração cultural em todos os nossos países, defendendo valores que são os nossos valores compartilhados.
Clarin